Trump x Biden: presidente se vende como outsider e democrata oferece empatia em debate com tom convencional
- Mariana Sanches - @mariana_sanches
- Da BBC News Brasil em Washington
Há 5 horas
Ao entrar no palco para o segundo debate entre candidatos à presidência, o republicano Donald Trump sabia que seria sua última oportunidade de confrontar o democrata Joe Biden diante de eleitores ainda indecisos e produzir alguma mudança significativa na corrida eleitoral.
A 12 dias da eleição, Biden mantém vantagem de 9,9 pontos percentuais, segundo o agregado de pesquisas nacionais do site FiveThirtyEight.
Na noite desta quinta-feira, 22, o presidente mostrou aos telespectadores uma versão de si mesmo muito diferente do que apresentara há pouco mais de três semanas, em um debate presidencial descrito como "caótico" e uma "experiência de abuso emocional" pela imprensa americana.
O embate ainda teve trocas de acusações duras e inconsistentes e uma evidente animosidade entre os candidatos, mas, de modo geral, o espetáculo assumiu contornos de um debate presidencial americano convencional.
Se, no evento anterior, Trump interrompeu seu adversário dezenas de vezes e se dirigiu a ele de modo agressivo, agora o presidente olhava diretamente para a câmera, não para Biden, e falava em tom pausado e relativamente tranquilo, com gestos mais comedidos e evitando interrupções ou cortes bruscos no raciocínio do oponente.
A mudança de comportamento se estendeu à moderadora do evento, Kristen Welker, da rede NBC. Trump teve o cuidado de pedir à ela licença para falar e fez elogios: "Eu respeito muito o modo como você está conduzindo isso".
No embate anterior, mediado por Chris Wallace, Trump chegou a dizer que o moderador atuava como linha auxiliar de Biden. Wallace perdeu o controle da situação e chegou a gritar com os presidenciáveis. Dessa vez, o fato de os candidatos terem os microfones desligados durante a fala inicial do adversário em cada um dos seis temas também ajudou a manter a organização.
A nova versão debatedora de Trump reflete o entendimento da campanha do republicano de que a artilharia pesada adotada no primeiro debate não funcionou. Depois disso, a vantagem de Biden cresceu mais de dois pontos percentuais, no agregado. Para seus assessores, após passar meses acusando Biden de ser incapaz de debater, Trump ajudou o democrata ao interrompê-lo incessantemente, o que acabou impedindo que Biden, que não é conhecido como um grande debatedor, se enrolasse sozinho ao dar uma resposta mais longa ou responder uma pergunta espinhosa.
E embora tenha dito, exageradamente, que 'foi o presidente que mais fez pelos negros americanos desde Abraham Lincoln", que aboliu a escravidão no país, ou que tornou a fronteira com o México muito mais segura, Trump investiu menos em se autopromover e vender seus planos de administração do que a atacar a imagem do oponente. O presidente repetiu várias vezes, em diferentes tópicos, a pergunta: "Você esteve na política por tanto tempo, porque não fez antes?", ou outras variações desse questionamento. Ao comentar sobre a China, Trump deixou claro seu argumento. Disse que Biden é um político tradicional. "Eu não sou um político tradicional, por isso eu fui eleito", afirmou.
Ao falar sobre crime, Trump disparou: "Veja, é só papo, zero ação com esses políticos".
Em outro momento, o republicano afirmou: "Você continua falando sobre todas as coisas que vai fazer, mas você estava lá (no poder) há pouco tempo e não fez nada. Joe, eu concorri por sua causa. Concorri por causa de Barack Obama. Vocês fizeram um trabalho ruim. Se eu achasse que vocês fizeram um bom trabalho, jamais teria concorrido".
As declarações vieram entremeadas por acusações sem provas de que Biden, ex-vice de Obama, ou membros de sua família teriam negócios corruptos em países como China, Rússia e Ucrânia.
Ao lançar essas ideias, Trump apela para a rejeição à fauna política da capital americana e para a simpatia dos eleitores à imagem de empresário outsider, que se aventura na política para ser um gestor capaz de sanear os problemas de políticos profissionais. É um repeteco em relação ao seu discurso de campanha de 2016, mas com uma diferença fundamental: há 4 anos é Trump quem comanda a máquina política do país.
Curiosamente, coube à moderadora Welker apontar essa contradição no argumento de Trump. Questionado sobre porque sua administração ainda não aprovou um novo pacote de estímulo à economia, o que deve deixar milhões de americanos sem renda em novembro, Trump culpou a líder da Câmara americana, a representante democrata Nancy Pelosi. Welker então emendou: "mas você é o presidente".
Trump também buscou mobilizar a insegurança do eleitorado. Acusou Biden de ser um instrumento para democratas mais à esquerda, como o senador socialista Bernie Sanders. O presidente afirmou que Biden pretendia abolir os planos de saúde privados para substituí-los por um modelo 100% público, uma ideia defendida por oponentes de Biden nas primárias do partido e que enfrenta forte resistência dos eleitores. O candidato democrata, considerado moderado, negou que defenda o modelo completamente público e reiterou apoio às empresas de saúde.
Trump afirmou que o programa ambiental de Biden iria abolir a extração de petróleo por meio de uma técnica chamada fracking, que consiste em fragmentar o subsolo rochoso por meio da injeção de água e areia a altas pressões, o que libera o combustível fóssil para a superfície.
Esse tipo de procedimento é usado na indústria petrolífera da Pensilvânia, talvez o Estado mais importante na disputa entre os candidatos hoje, pela configuração do colégio eleitoral americano.
Biden negou que pretenda abolir o fracking, e chegou a desafiar Trump a provar que ele já tenha dito algo assim antes. No entanto, ao fim do debate, Biden fez uma declaração que parece contrariar sua afirmação anterior. "Eu faria a transição da indústria do petróleo, sim, porque a indústria do petróleo polui significativamente", afirmou Biden, e completou:
"Precisamos que outras indústrias façam a transição para chegar, em última instância, a emissões zero de CO2 até 2025." Mais tarde, ele disse que não se referia ao fim da indústria de petróleo, e sim ao corte de subsídios a essa atividade. Trump respondeu imediatamente:
"Basicamente, o que ele está dizendo é que destruirá a indústria do petróleo. Você vai se lembrar disso, Texas? Vocês vão se lembrar disso Pensilvânia, Oklahoma, Ohio?"
A candidatura democrata é o resultado de uma coalizão ampla dentro do próprio partido - com apoiadores mais à esquerda e mais ao centro - e conta ainda com o apoio de republicanos históricos. Assim, não é difícil achar ideias antagônicas nas propostas oferecidas ao candidato.
Joe Biden tem repetido que nesse momento o partido é ele e as ideias que abraçou. Mas nem sempre essas ideias são tão claras e a situação pode gerar insegurança nos eleitores indecisos. Trump explorou essas ambiguidades a fundo. Em sua mensagem final ao público, afirmou: "Eu estou diminuindo impostos, ele quer aumentá-los pra todo mundo. E ele vai impor novas regulações em tudo. Ele vai destruir. Se ele ganhar, vocês verão uma depressão econômica em um grau que nunca viram. Sua aposentadoria irá para o inferno e esses serão dias muito, muito tristes para esse país".
Sem cometer gafe nem se descontrolar diante de insinuações de que seu filho, Hunter Biden, e outros parentes teriam negócios corruptos ou questionáveis na China ou na Ucrânia, Biden repetiu a fórmula que adotou desde que foi confirmado candidato do partido, durante a convenção democrata, em agosto: se apresentar como o candidato da união nacional, preocupado com as pessoas e as suas vidas.
"Isso (o debate) não é sobre minha família, a família dele, mas sobre a sua família. A classe média está em apuros. Nós deveríamos estar falando disso", afirmou Biden, em um tipo de frase que tem repetido, olhando para a câmera. Dessa vez, Biden não insultou o presidente como no primeiro debate, em que o chamou de palhaço e o mandou calar a boca.
E embora a pandemia de covid-19 e a questão racial sejam os dois assuntos socialmente mais quentes, foi durante uma questão sobre migração que Biden parece ter conseguido encaixar melhor seu discurso da empatia.
Trump foi questionado sobre a política que adotou em 2018 de separar crianças e seus pais após cruzarem ilegalmente a fronteira com o México e que resultou em 545 crianças jamais reunidas aos pais. Sobre isso, ele afirmou que "as crianças estão bem tratadas" e que "estamos tentando reuni-las às famílias". E completou: "Mas muitas dessas crianças vieram sem os pais. Elas vêm por meio de cartéis, coiotes e gangues."
Biden rebateu: "Os coiotes não as trouxeram. Seus pais estavam com elas. Elas foram separadas de seus pais. E isso nos torna motivo de chacota e viola todas as noções de quem somos como nação."
Biden foi lembrado de que o governo Obama teve recorde em deportações. Embora fosse raro, a gestão também separou algumas famílias. E reconheceu as falhas do governo que compôs. Ele admitiu que a gestão Obama demorou pra fazer "o que era certo", em referência à reforma migratória, e prometeu conceder cidadania a 11 milhões de pessoas que vivem ilegalmente nos Estados Unidos e garantir a permanência dos chamados Dreamers, adultos que foram trazidos dos seus países de origem ainda crianças, há décadas, e hoje estão sob risco de deportação para um país que não reconhecem como seu.
As primeiras pesquisas feitas ainda na noite do evento com eleitores que assistiram ao programa sugerem vitória de Biden sobre Trump. O Instituto YouGov, por exemplo, deu ao democrata margem de 19 pontos percentuais sobre o republicano. Na prática, essas pesquisas indicam que o presidente não parece ter conseguido gerar um fato capaz de chacoalhar as estruturas da corrida eleitoral.
A tarefa era difícil. Ao contrário do que acontece normalmente no Brasil, em que a eleição vai ganhando atenção nos dias que a antecedessem, o que torna o último debate entre candidatos crucial, a maior parte dos eleitores americanos chega a esse momento com o voto já decidido. Tanto é assim que 46 milhões deles - o que equivale a 1/3 do eleitorado que votou em 2016 - já foram às urnas esse ano, tanto via correio quanto em seções eleitorais que permitem o voto adiantado.
Além disso, de acordo com o agregado de pesquisas do site FiveThirtyEight, o número de eleitores que se declaram indecisos é consideravelmente baixo: apenas 5,7% deles estariam nessa condição. E em uma eleição altamente polarizada, os estudos mostram que é cada vez mais difícil virar um voto democrata em republicano ou vice-versa. Por tudo isso, as chances do presidente Trump vencer a corrida, que já foram de 35 em 100 há dois meses, hoje estão em 12 em 100, segundo o FivethirtyEight.