Dia Mundial do Rock: Menina autista encontra na música forma de ...
Maria Alice superou o medo do microfone com musicalização e canção de Beatles
Aos 5 anos, Maria Alice já é bem decidida quanto ao gênero musical preferido: é apaixonada por rock and roll e não abre mão.
Beatles, Elvis e Queen estão na lista dos ídolos da criança, que mora em Ribeirão Preto (SP), e ela tem 'Yellow Submarine' como a música favorita.
O rock, no entanto, não é mero gosto musical. O gênero faz parte do desenvolvimento dela, que foi diagnosticada com autismo.
No Dia Mundial do Rock, comemorado neste sábado (13), o g1 mostra como a música é muito mais do que entretenimento e pode ajudar a transformar a vida de pessoas neurodivergentes.
Maria Alice tem 5 anos e é fã de Beatles, Elvis e Queen — Foto: Arquivo Pessoal
Mãe de Maria Alice, Alessandra Santana Camargo conta que já aos 3 anos, a menina ficava brava se mudassem a estação de rádio quando estava tocando algum rock.
Pouco tempo depois, diz Alessandra, a menina viu uma propaganda de uma escola de música e passou a insistir para que pudesse fazer aulas.
Ao mesmo tempo em que desenvolvia a paixão pela música, Maria Alice passou a apresentar comportamentos atípicos, o que levou a família a desconfiar que ela pudesse ser neurodivergente.
Na família já tinha um caso de Síndrome de Asperger e isso chamou a atenção dos pais para que um diagnóstico fosse buscado.
“Quando ela demorou demais para falar, a gente percebeu que tinha alguns trejeitos, ações e atitudes que não eram de crianças da idade dela. Ela fez vários exames psicológicos, com terapeuta ocupacional, e percebemos que tinha uma diferença com as demais crianças. A gente fechou o diagnóstico mais cedo por todos os indícios, o fato de ela se 'ausentar' por um bom tempo, a gente ter de bater palma”.
Música tem ajudado Maria Alice a se desenvolver no tratamento do autismo — Foto: Arquivo Pessoal
Cantando no submarino dos Beatles
Quando entrou nas aulas de música, no início do ano, Maria Alice desenvolveu uma paixão especial pela bateria e logo ela se tornou seu instrumento preferido. Mas, mesmo com a paixão pelo rock, a menina tinha fobia de microfones.
Aos poucos, diz a mãe, os professores foram buscando habituá-la e fazer com que ela perdesse o medo, uma das etapas mais importantes para o desenvolvimento.
Um dos momentos de maior emoção da família foi quando Maria Alice finalmente superou a limitação, soltou a voz e cantou a musica favorita, Yellow Submarine, pela primeira vez.(veja mais acima)
“O professor era um substituto e ele disse que iria trabalhar a aula inteira para ela perder o medo do microfone. Ele pediu para eu ficar lá perto com ele e foi tocando Beatles, falando o tempo todo 'Maria Alice, sua voz é muito bonita, eu quero ouvi-la dentro do submarino'. Ele foi trabalhando isso, disse que a caixa de som era o submarino. E aí ela cantou. Eu despedacei de chorar, porque foi lindo”.
A sala da escola de música é decorada em homenagem à icônica canção da banda inglesa, considerada por muitos a maior de todos os tempos. Isso foi essencial para criar o clima imersivo que possibilitou a Maria Alice dar um passo tão importante.
Sala tem decoração especial da canção 'Yellow Submarine', dos Beatles — Foto: Reprodução/School of Rock
Barulho no tratamento de autismo
Pessoas com autismo são conhecidas por não tolerarem sensações intensas, como barulho. Maria Alice não gosta de outros sons, como gritos e até mesmo outros gêneros musicais, como sertanejo e pagode. Mas, segundo a mãe, o rock pode estar em último volume que ela não se incomoda.
Terapeuta ocupacional especialista em integração sensorial, Renata Zorzenon explica que isso acontece porque o autismo é uma condição que pode se manifestar de muitas formas diferentes, inclusive com uma percepção menor de alguns sentidos.
Ela acompanhou o desenvolvimento da criança e diz que Maria Alice é uma 'buscadora', ou seja, o cérebro dela processa a informação de maneira diminuída e ela precisa do barulho aumentado. Ou seja, ela demanda maiores estímulos sensoriais.
Nestes casos, ainda segundo a especialista, o som produzido pela criança sai de forma desorganizada e caótica. A música ajuda a trazer equilíbrio e transformar a condição em algo funcional.
“Por isso a história do rock, de ela buscar por barulho. A música tem trazido a ela harmonia, uma forma mais funcional de buscar. Não é legal a criança buscar barulhos intensos o tempo inteiro. Em uma sala de aula ou em um lugar em que ela não possa fazer barulho, a tendência é que ela busque o barulho para conseguir uma organização mental maior".
Quando Maria Alice enfrentou o medo do microfone, Renata avaliou que a dessensibilização estava acontecendo, de forma a trazer organização de uma forma funcional, superando a limitação trazida pelo autismo.
Muitos avanços em pouco tempo
O tempo é outro fator-chave para o desenvolvimento de pessoas com autismo. No caso de Maria Alice, as coisas têm evoluído de maneira bem rápida.
Alessandra diz que a filha já está compreendendo melhor o tempo das coisas e sabe que cada um tem sua vez, que cada nota deve ser tocada no momento certo, de forma harmônica.
“Ela não respeitava o tempo de nada, pegava tudo, jogava tudo. Agora ela respeita, o professor mostra como tocar no teclado, ela imita. A transformação é principalmente terapêutica, aprender a esperar, perder medo de algumas coisas. Ela sai da aula tranquila, não sai com agitação, parece que está aliviada. Tocar bateria é como se ela tivesse feito uma atividade física".
A criança já realizou várias atividades, como natação e ballet, mas foi na música que mostrou maior desenvolvimento e interesse.
Musicalização não é só sobre música
Pedagoga e professora de música que atua com crianças com autismo no Projeto Guri há 17 anos, Rosemary Martins explica que a musicalização vai muito além do que aprender a tocar um instrumento.
Brincadeiras, jogos, exercícios e atividades que envolvem música são formas de aprendizagem, alfabetização, terapia e desenvolvimento humano e o segredo, segundo ela, é não forçar o aluno a fazer o que não quer e respeitar o tempo de desenvolvimento de cada um, que pode variar bastante.
“A gente não pode exigir ou esperar uma coisa imediata. As coisas são a longo prazo. Só depois de um tempo que você vai ver o resultado legal para essa criança”.
Mãe acredita que Maria Alice irá seguir carreira musical — Foto: Arquivo Pessoal
Não existe receita
O rock é uma das saídas para Maria Alice, mas não é regra. A diversidade das pessoas com autismo é a mesma das pessoas neurotípicas -- que não possuem problemas de desenvolvimento --, por isso os especialistas atentam que não existe cartilha ou receita: cada um é um e cada um tem sua própria necessidade.
Alessandra diz que o importante é não desistir dos filhos autistas.
“Se quer colocar o filho na música, passa para o professor como ele é, o que ele precisa. Deixe claro, não espere só do profissional. O desenvolvimento da pessoa com autismo depende dos pais”.
Para o futuro da filha, ela acredita que Maria Alice seguirá carreira musical. “Tudo que se entrega a ela, ela faz som, então eu acho que é uma coisa que ela vai seguir sim, que ela gosta”.