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'A verdadeira exagerada sou eu, não era o Cazuza', diz Lucinha Araujo

A verdadeira exagerada sou eu não era o Cazuza diz Lucinha Araujo
Mãe do cantor, morto há 30 anos, conta que celebrações em torno da data foram adiadas pela pandemia e fala como mantém a Sociedade Viva Cazuza: 'Tenho vários amigos milionários, mas posso contar nos dedos os que me doam um dinheiro bom'

RIO — Todo ano, Lucinha Araújo manda rezar uma missa no dia da morte do filho, Cazuza (1958-1990). Agora, isolada em Angra dos Reis há quatro meses por causa da pandemia de Covid-19, ela resolveu recorrer a uma missa virtual, transmitida pelo Facebook (@paroquiadaressurreicao), às 19h.

— Sempre peço para celebrar uma missa tanto no aniversário de nascimento dele como no de morte, e do João (Araújo, morto em 2013) também, sempre na Paróquia da Ressurreição (Ipanema), mas este ano vou fazer virtual, apesar de as igrejas terem reaberto. A ideia foi do Padre José Roberto, meu amigo — conta Lucinha, que conversou por telefone com O GLOBO.Como tem passado esta pandemia?

Estou com sobrinha, marido e filha, se não estivesse acompanhada eu não ia aguentar. Tenho esta casa há 32 anos e nunca fiquei mais de uma semana nela. Sozinha, ia ter um troço.

O que havia planejado para celebrar os 30 anos de morte do Cazuza?

Ia ter um bando de coisas. Agora, precisamos esperar acabar esta pandemia. Uma delas é o musical "Cazas de Cazuza", que estava a ponto de voltar ao Vivo Rio, que fechou. Um espetáculo lindo, que estreou há mais de 20 anos e ficou um mês no Canecão, sempre lotado.

Passados tantos anos, eles montaram um novo elenco, fui ver o último ensaio, já tinha até convite vendido. Vai ficar para o ano que vem, eu acho. Mas este é diferente, o outro era um musical, este traz quatro Cazuzas, mostra os relacionamentos que ele tinha. Agora vamos esperar.

Para quem viveu com uma perda tão grande, a morte dá medo?

Eu vivi a pior coisa que a morte pode oferecer, ver meu filho condenado à morte, porque naquela época era isso ou nada. Para mim, hoje em dia, virei uma outra pessoa. Pode acontecer qualquer coisa, seja o que for, que eu vou achar pouco.

Você sonha com Cazuza? Que tipo de sonho?

Sonhava muito, agora menos. Tenho sonhado mais com João (Araújo), que morreu há menos tempo e deve estar reclamando ainda. Mas no Cazuza eu penso todos os dias, e falo dele também. Volta e meia, eu cito que ele falaria isso ou aquilo, as opiniões dele são atuais.

Ele não era fácil, neste ponto saiu ao pai, apesar de o João ser muito diferente de mim em relação ao temperamento. Ele era uma pessoa discreta, eu indiscreta. A verdadeira exagerada sou eu, não era o Cazuza. Rio e falo alto, não devo nada a ninguém. Uma coisa boa da velhice é que você fala tudo o que você quer.

Qual é a maior lembrança do Cazuza?

O legado não foi só de coragem, que não conheço outra pessoa no Brasil com tanta coragem. Quando ele quis anunciar que estava com Aids, ele me disse "eu não aguento mais esconder que estou doente, vou abrir a boca e vou falar", eu pedi para ele não fazer isso. "As pessoas vão ficar com medo de você". Mas ele rebateu: "Não importa". Faz todo sentido para uma pessoa que canta "Brasil! Mostra tua cara", que não pode esconder a sua num momento destes.

Ele se sentiu menos amado depois de anunciar?

Ele nunca foi tão amado na vida dele como depois que declarou que estava doente. Achei também que aquilo foi um exemplo para milhões de soropositivos não viverem escondidos.

Na época dele, infelizmente, só havia o AZT. Trinta anos depois, há 26 diferentes tipos de medicamentos retrovirais, os chamados coquetéis que, nada mais são do que a mistura de dois ou três, de acordo com o exame médico.

Ainda há pessoas que acham que é só chegar na farmácia e pedir: "me dá um coquetel para Aids", mas não é nada disso. Minhas crianças (da Sociedade Viva Cazuza) todas tomam e estão perfeitas de saúde.

Tem alguma conversa entre vocês que ainda não foi dita?

Faltando 12 horas para ele morrer, eu entrei no quarto e ele virou para mim: "mamãe, estou morrendo". Eu disse, "não faz isto, você disse pra mim que não ia falar nesse assunto, você sabe que esta palavra 'morte' não se fala aqui em casa". Aí ele respondeu: "De fome mãe, de fome. O que tem para rangar?".

Um dos últimos a interpretar Cazuza foi Emilio Dantas, no musical que ficou em cartaz um ano no Rio e depois viajou para São Paulo. Você aprovou?

Este menino virou um astro, aliás, com todo merecimento, ele é um espetáculo, fez um Cazuza perfeito, assim como o Daniel de Oliveira no cinema. O Cazuza é pé quente, porque todos os dois fizeram sucesso e entraram para o primeiro time de atores.

Como está funcionando a Sociedade Viva Cazuza nesta pandemia?

Tive que montar um esquema na Fundação, porque lá é sistema de internato, as crianças moram e dormem lá, vivem lá fim de semana e feriado. Tivemos que contratar mais um motorista e alugar uma van para buscar e levar os funcionários todos os dias para protegê-los. Até agora deu certo, ninguém se contagiou. Falo com eles todos os dias.

São quantas crianças?

Vinte e cinco, tenho capacidade para 40, mas o Juizado de Menores não me deixa ter mais. Já foram 37, mas vai mudando de juiz, e cada um tem uma cabeça. Estes meninos ficavam com a gente até completar 18 anos, mas agora só vamos ficar com menores de 5, desde bebê recém-nascido.

É muita responsabilidade para mim, esses meninos vão ficando mais velhos, e você não imagina a trabalheira. Já basta o que eu passei com Cazuza, que era um só. É natural, eles vão ficando mais velhos e querem sair. Adolescente, mesmo HIV positivo, é igual aos outros, vão querer fazer as mesmas coisas.

O que falta?

Vamos completar 30 anos e nunca fechamos. A Viva Cazuza é uma conquista, mas também eu uso os direitos autorais do meu filho, porque o grande problema é financeiro, imagina quanto custa. Lavadeira, passadeira, faxineira, tudo em triplo, elas trabalham em esquema 12 por 36 horas, além de enfermeiras, babás, supervisores, gerente.

Com os direitos autorais do Cazuza eu fico tranquila, mas quando falta dinheiro eu coloco do meu. Se eu for esperar doações, tem cada vez menos. Tenho vários amigos milionários, mas posso contar nos dedos os que me doam um dinheiro bom.

Eu vendo o nome do Cazuza. Por exemplo, já fiz negócio com marcas de um tudo, que puderam usar músicas dele em troca de ajuda. Queria escrever um livro sobre a minha vida, à sombra de dois homens importantes, mas não sei se vou ter saco, soa meio pretensioso. Eu sou meio difícil, mas sou fácil.

Se pudesse dar um conselho para quem não conheceu Cazuza, seria "conheça, vale a pena". Sou leonina, cuido de todo mundo mas ninguém me faz de boba. Faço 84 anos em 2 de agosto, Cazuza teria 62. Não me dou o direito de ficar com a cabeça ruim, infeliz. Tenho meus momentos de tristeza praticamente todos os dias, lembrando do meu filho e do meu marido, mas vou para o chuveiro e tomo um banho. 

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